quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Corpo de prova

De acordo com os ensinamentos espíritas, no intervalo entre as encarnações o espírito pode planejar sua próxima existência escolhendo algumas provas que terá que suportar. Estas lhe servirão para aprendizado e, consequentemente, para a sua própria evolução.

Para tanto, estas provas têm, antes de mais nada, um caráter moral. Isto é, elas miram nos nossos defeitos e na nossa ignorância e assim nos oferecem a oportunidade de agirmos sobre as questões morais nas quais teremos que decidir pelo certo ou pelo errado.

Por outro lado, muitas das vezes estas provas se concretizam a partir de realidades materiais como, por exemplo, pela falta ou excesso de dinheiro, pela inserção em uma família mais ou menos educada, ou até pela encarnação em um corpo mais ou menos saudável.

Provavelmente foi por causa deste raciocínio que Kardec repensou algumas das respostas obtidas nos diálogos que serviram de base para a primeira edição do Livro dos Espíritos. E uma delas, sobre a escolha do corpo, é bastante contrastante e merece ser bem observada. Vejam o mapeamento:

Primeira edição
145. O espírito tem o direito de escolher o corpo no qual vai encarnar?
"Não; ele tem a escolha do gênero de provas que quer suportar, e é nisso que consiste seu livre arbítrio."
__ Assim, todas as tribulações que experimentamos na vida teriam sido previstas por nós e somos nós que as teríamos escolhido?
"Sim."
__ Que é que orienta o espírito na escolha das provas que quer suportar?
"Escolhe as que possam constituir para si uma expiação, pela natureza de suas faltas, e fazê-lo subir depressa."
__ Poderia fazer a escolha durante a estada corporal?
"O desejo da alma tem influência; isso depende da intenção; mas, na estada espírita, vê por vezes as coisas muito diferentemente do que sob a capa corporal. É só em espírito que ela faz tal escolha; mas, ainda uma vez, o pode fazer na existência carnal, pois a alma tem sempre momentos em que fica independente da carne na qual mora."

O espírito não tem o direito de escolher o corpo no qual vai encarnar, mas tem a do gênero de provas que quer suportar, e é nisso que consiste seu livre arbítrio. Assim pois uns podem impor-se uma vida de misérias e privações a fim de procurar suportá-la com coragem; outros querer experimentar-se com as tentações da riqueza e do poder, ambos muito mais perigosos pelo abuso e pelo uso maldoso que se podem fazer deles, afora as más paixões que eles desonvolvem.
O homem, neste mundo e colocado sob a influência de idéias carnais, não vê nessas provas senão o lado sofredor; é por isso que lhe parece mais natural escolher aquelas que, no seu parecer, podem conciliar-se com prazeres materiais; mas, na vida espírituas, ele pensa de outra forma; ele compara seus prazeres fugazes e grosseiros com a felicidade inalterável que entrevê, e nota então que a terá após algumas agruras passageiras. (Nota 5).

Segunda edição
335. O Espírito tem o direito de escolher o corpo no qual vai encarnar ou somente o gênero de vida que lhe deve servir de prova?
"Pode também escolher o corpo, porque as imperfeições desse corpo são para ele provas que ajudam o seu progresso, se vence os obstáculos que nele encontra, mas a escolha não depende sempre dele; ele pode pedir."
__ Poderia o Espírito, no último momento, recusar o corpo escolhido por ele?
"Se o recusasse, sofreria muito mais do que aquele que não tentasse prova alguma."

As primeiras perguntas em ambos os diálogos, nas duas edições, são praticamente as mesmas. Entretanto, as suas respostas são consideravelmente diferentes. Na primeira edição e já no início da resposta é descartado, por meio de um breve "não", o direito de escolher o corpo. Confirmando este descarte também temos nos comentários (ou melhor, enunciados) uma replicação desta afirmação embora as duas idéias estejam explicitamente ligadas por um "mas", isto é, a segunda idéia funciona como uma ressalva à primeira.

Já na segunda edição Kardec reelabora a resposta para deixar claro que seria possível também escolher o corpo como uma prova para o espírito. Vale ressaltar que o mestre Kardec não rompe totalmente com a resposta anterior uma vez que ele coloca uma certa restrição a esta possibilidade ao afirmar que "a escolha não depende sempre dele". Ou seja, não se trata de um direito absoluto, mas de uma possibilidade.

De toda forma, é importante identificar nesta reelaboração o trabalho de revisão e atualização da obra deixando-a mais clara e abrangente.

Há ainda uma detalhe muito pertinente nesta questão: a resposta utilizada na primeira edição foi reaproveitada para uma outra pergunta na segunda edição. Vejam que interessante:

Primeira edição
145. O espírito tem o direito de escolher o corpo no qual vai encarnar?
"Não; ele tem a escolha do gênero de provas que quer suportar, e é nisso que consiste seu livre arbítrio."
__ Assim, ...

Segunda edição
258. Quando no estado errante e antes de se reencarnar, o Espírito tem a consciência e a previsão das coisas que lhe sucederão durante a vida?
"Ele próprio escolhe o gênero de provas que quer suportar, e é nisso que consiste seu livre arbítrio."
__ Não é Deus que lhe impõe, então, as tribulações da vida como castigo?
"Nada ocorre sem a permissão de Deus, pois é Ele quem estabelece todas as leis que regem o Universo. Perguntai, então, por que fez tal lei ao invés de outra. Dando ao Espírito a liberdade de escolha, deixa-lhe toda a responsabilidade
de seus atos e suas conseqüências, de maneira que nada entrava o seu futuro; o caminho do bem, como o do mal, lhe está aberto. Se sucumbe, resta-lhe a consolação de que nem tudo se acabou para ele; Deus, na sua bondade, lhe dá a oportunidade de recomeçar o que foi mal feito. É necessário, aliás, distinguir o que é obra da vontade de Deus do que é da vontade do homem. Se um perigo vos ameaça, não fostes vós que criastes, mas Deus; contudo, pela própria vontade, a ele vos expondes porque vedes um meio de adiantar-vos e Deus o permitiu."

Diferentemente de outras situações onde Kardec reelabora ou desenvolve a resposta, neste caso ele reelabora a pergunta que deu origem a resposta. E ainda no novo diálogo, Kardec apresenta uma nova pergunta que diminui o grau de liberdade no direito de escolha das provas (e mesmo dos gêneros de provas) ao afirmar que "nada ocorre sem a permissão de Deus".

Concluindo, podemos perceber que aqui ocorre um outro exemplo do aspecto gradativo ou evolutivo na elaboração da nova obra. Isto é, os conceitos e os ensinamentos espíritas passam a ter um caráter mais geral e menos definitivo. No caso específico da escolha das provas o direito deixou de ser absoluto e passou a ser colocado como uma possibilidade. Também o que não consistia um direito, a escolha do corpo, passou a ser considerada como uma possibilidade.

2 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Olá Vital.
Temos mais um ponto do crescimento de um modo mais relativista de ver a realidade,onde a relação de Deus com o Homem é mais de possibilidades do que de certezas.
Tem, simultaneamente, o reforço do conceito evolucionista do Homem, pois apenas os mais evoluidos podem escolher. Na primeira edição o "não" excluia a possibilidade de crescimento do livre-arbítrio na escolha da reencarnação, não importando qual o estado evolutivo.
Finalizando: relativismo e evolucionismo.

abraços

Leo

Vital Cruvinel disse...

Olá Leo,

Estas palavras, relativismo e evolucionismo, ainda vão aparecer bastante neste nosso trabalho!

Abraço, Vital.