quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Realidade dos sonhos

Os sonhos possuem uma posição de destaque nos ensinamentos espíritas uma vez que eles podem refletir nossas experiências espirituais fora do corpo físico. Por outro lado, também podem refletir o produto de nossa imaginação.

Neste ponto, a visão do mestre Allan Kardec alterou-se significativamente ao ampliar as hipóteses envolvendo os sonhos. Por exemplo, Kardec, tendo maior controle sobre a doutrina, passa a ser mais criterioso em relação a capacidade de visão espiritual dos extáticos. Em um extenso diálogo na primeira edição com seis pares de perguntas e respostas (mais os comentários adicionais) uma das respostas se destaca por estar ligeiramente modificada. Vejam:

Primeira edição
165. (...)
__ Existem no entanto coisas que o extático pretende ver e que são evidentemente o produto de uma imaginação impressionada pelas crenças e preconceitos terrestres. Tudo o que ele vê não é, então real?
"Tudo o que ele vê é verdadeiro; mas como seu espírito está sempre sob a influência das idéias terrenas, ele o pode ver à sua maneira, ou melhor dizendo, o exprimir em uma linguagem apropriada aos seus preconceitos e às idéias de onde foi nascido, ou aos vossos, a fim de melhor se fazer compreender."

Segunda edição
443. Existem coisas que o extático pretende ver e que são evidentemente o produto de uma imaginação impressionada pelas crenças e preconceitos terrestres. Tudo o que ele vê não é, então real?
"Tudo o que vê é real para ele; mas como seu Espírito está sempre sob a influência das idéias terrenas, ele o pode ver à sua maneira, ou melhor dizendo, o exprimir em uma linguagem apropriada aos seus preconceitos e às idéias de onde foi nascido, ou aos vossos, a fim de melhor se fazer compreender. É nesse sentido, sobretudo, que ele pode errar."

Notem que na primeira edição a resposta exclui a possibilidade da visão ser fruto da imaginação do extático. Já na segunda edição kardec reformula a primeira frase relativizando a verdade. Mas, é interessante que kardec consegue retomar a ligação com a primeira edição ao adicionar explicitamente uma frase no final em que indica como ele pode errar, isto é, não estar com a verdade.

Porém, o próximo diálogo 444 que não tem equivalente na primeira edição já é mais claro em relação às possibilidades de engano nas revelações do extático. Vejam:

Segunda edição
444. Em que grau de confiança pode-se valorizar as revelações dos extáticos?
"O extático pode, muito frequentemente, se enganar, sobretudo quando quer penetrar naquilo que deve permanecer um mistério para o homem, porque, então, ele se abandona às próprias idéias, ou se torna joguete de Espíritos enganadores que aproveitam do seu entusiasmo para fasciná-lo."

Fica mais fácil de entender agora o porquê da necessidade da minuciosa revisão no diálogo anterior. Ou seja, o novo diálogo trouxe uma nova visão que "forçou" a modificação sutil e importante para corrigir a visão do outro diálogo.

Vejam, agora, que interessante o mapeamento abaixo. O diálogo 155 com dois pares de perguntas e respostas se transformou em um único par cuja resposta foi bastante estendida, o que indica, provavelmente, um ditado espontâneo sobre o tema.

Primeira edição
155. Como podemos apreciar a liberdade do espírito durante o sono?
"Pelos sonhos."
__ Os sonhos têm então alguma coisa de real?
"Os sonhos são sempre reais, mas não como o entendem os quiromantes de buena dicha. Certamente que o espírito não repousa nunca e que, quando o corpo repousa, o Espírito dispõe de mais faculdades do que na vigília. Tem o conhecimento do passado e, algumas vezes, previsão do futuro. Adquire maior energia e pode entrar em comunicação com os outros Espíritos, seja neste mundo, seja em outro. Muitas vezes, dizes: Tive um sonho bizarro, um sonho horrível, mas que não tem nada de verossímil; enganas-te, é frequentemente uma lembrança dos lugares e das coisas que viste e verás em uma outra existência ou em um outro momento. Estando o corpo entorpecido, o Espírito esforça-se por quebrar seus grilhões, procurando no passado e no futuro."

A libertação do espírito, durante o sono, se põe em manifesto pelo fenômeno dos sonhos. Os sonhos são assim efeito da emancipação da alma, que mais independente se torna pela suspensão da vida ativa e de relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida que se alonga até aos mais afastados lugares e até mesmo a outros mundos. Daí também a lembrança que traz à memória acontecimentos da precedente existência ou das existências anteriores; de aí, finalmente, em alguns casos, o pressentimento das coisas futuras.
A recordação incompleta que conservamos do que nos apareceu quando sonhávamos, as singulares imagens do que se passa ou se passou em mundos desconhecidos, entremeados de coisas do mundo atual, é que formam esses conjuntos estranhos e confusos, que nenhum sentido ou ligação parecem ter.

Segunda edição
402. Como podemos apreciar a liberdade do Espírito durante o sono?
"Pelos sonhos. Crede, enquanto o corpo repousa, o Espírito dispõe de mais faculdades do que na vigília. Tem o conhecimento do passado e, algumas vezes, previsão do futuro. Adquire maior energia e pode entrar em comunicação com os outros Espíritos, seja neste mundo, seja em outro. Muitas vezes, dizes: Tive um sonho bizarro, um sonho horrível, mas que não tem nada de verossímil; enganas-te, é frequentemente uma lembrança dos lugares e das coisas que viste e verás em uma outra existência ou em um outro momento. Estando o corpo entorpecido, o Espírito esforça-se por quebrar seus grilhões, procurando no passado e no futuro.
Pobres homens ...
O sono liberta ...
Isso para os Espíritos ...
Pelo efeito do sono ...
O sonho é a lembrança do que o Espírito viu durante o sono. Notai, porém, que nem sempre sonhais porque nem sempre vos lembrais do que vistes, ou de tudo o que haveis visto. É que não tendes então a alma no pleno desenvolvimento de suas faculdades. Muitas vezes, apenas vos fica a lembrança da perturbação que o vosso Espírito experimenta à sua partida ou no seu regresso, acrescida da que resulta do que fizestes ou do que vos preocupa quando despertos. A não ser assim, como explicaríeis os sonhos absurdos, que tanto os sábios, quanto as mais humildes e simples criaturas têm? Acontece também que os maus Espíritos se aproveitam dos sonhos para atormentar as almas fracas e pusilânimes.
De resto, vereis ...
Tratai de distinguir essas duas espécies de sonhos nos de que vos lembrais, do contrário cairíeis em contradições e em erros funestos à vossa fé."

Os sonhos são efeito da emancipação da alma, que mais independente se torna pela suspensão da vida ativa e de relação. Daí uma espécie de clarividência indefinida que se alonga até aos mais afastados lugares e até mesmo a outros mundos. Daí também a lembrança que traz à memória acontecimentos da precedente existência ou das existências anteriores. As singulares imagens do que se passa ou se passou em mundos desconhecidos, entremeados de coisas do mundo atual, é que formam esses conjuntos estranhos e confusos, que nenhum sentido ou ligação parecem ter.
A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas que apresenta a recordação incompleta que conservamos do que nos apareceu quando sonhávamos. É como se a uma narração se truncassem frases ou trechos ao acaso. Reunidos depois, os fragmentos restantes nenhuma significação racional teriam.

A primeira observação é a de que Kardec desfaz a idéia de que os sonhos são sempre reais ao remover a primeira parte da segunda resposta no diálogo da primeira edição (em vermelho). A mesma coisa se observa com a primeira frase dos comentários.

Por outro lado, Kardec introduz uma nova frase nos comentários (em vermelho) que reforça a idéia de que é possível que os sonhos podem ser incoerentes.

Ainda na nova exposição bastante extensa da resposta da segunda edição (que não reproduzimos aqui inteiramente) existem dois parágrafos indicando a possibilidade de que os sonhos não sejam reais e a necessidade de ter critérios para reconhecê-los como verdadeiros ou falsos.

Vejamos, agora, o mapeamento abaixo que também é um exemplo de fusão de respostas.

161. É verdade que certas circunstâncias desenvolvem a dupla vista?
"Sim."
__ Quais são essas circunstâncias?
"A doença, a aproximação de um perigo, uma grande comoção."
__ Nesses casos as visões não seriam coisas puramente fantásticas?
"Não; o corpo está algumas vezes em um estado particular que permite ao espírito ver o que não podeis ver com os olhos do corpo."
O fenômeno resultante da dupla vista parece produzir-se mais freqüentemente sob imperativas circunstâncias. As épocas de crise e de calamidades, as grandes emoções, todas as causas importantes, enfim, que sobreexcitam o moral, provocam seu desencadeamento. Parece que a Providência, em presença do perigo, nos dá o meio seguro de conjurá-lo. Todas as seitas e partidos perseguidos nos oferecem numerosos exemplos disso.

452. É verdade que certas circunstâncias desenvolvem a segunda vista?
“A doença, a aproximação de um perigo, uma grande comoção podem desenvolvê-la.
O corpo está algumas vezes em um estado particular que permite ao Espírito ver o que não podeis ver com os olhos do corpo.”
As épocas de crise e de calamidades, as grandes emoções, todas as causas que sobreexcitam o moral provocam seu desencadeamento da segunda vista. Parece que a Providência, em presença do perigo, nos dá o meio seguro de conjurá-lo. Todas as seitas e partidos perseguidos nos oferecem numerosos exemplos disso.

Observem que na terceira resposta há uma negativa de que as visões poderiam ser fruto da imaginação. Já na segunda edição esta negativa desaparece na síntese das respostas dando o resultado que Kardec aparentemente queria, que era o de oferecer uma visão mais equilibrada e racional da realidade dos sonhos.

Para completar, ainda neste tema Kardec removeu algumas perguntas (indicando a realidade dos sonhos) e adicionou outras (indicando a possibilidade da imaginação nos sonhos) como nas apresentadas abaixo.

Primeira edição
170. As síbilas .... ?
"Algumas vezes ... "
__ Que devemos pensar sobre alucinações?
"Mais verdadeiras do que se supõem. Ao fato que não sabem explicar chamam alucinação."
...

Segunda edição
405. Vêem-se frequentemente, em sonhos, coisas que parecem pressentimentos e que não se cumprem, de onde vem isso?
"Eles podem cumprir-se para o Espírito, se não para o corpo, isto é, o Espírito vê a coisa que deseja porque vai procurá-la. É preciso não se esquecer que, durante o sono, a alma está sempre, mais ou menos, sob a influência da matéria, e que, por conseguinte, ela jamais se liberta completamente das idéias terrenas. Disso resulta que as preocupações da vigília podem dar, ao que se vê, a aparência do que se deseja ou do que se teme; a isso, verdadeiramente, pode-se chamar um efeito da imaginação. Quando se está fortemente preocupado com uma idéia, a ela se liga tudo aquilo que se vê."

2 comentários:

Leopoldo Daré disse...

Anota aí Vital: mais um achado para a tese do crescimento da gradualidade e da relativização da Natureza e da Vivência humana, dentro da obra kardequiana.

Vital Cruvinel disse...

Tá anotado! Eheh! Daqui a pouco teremos uma porção! Abraço!